Passeio Público
(Um voo derradeiro)
A secura melancólica do céu das cidades é, não poucas vezes, insultada pelo ruflar anárquico de asas, sombras excessivas dilacerando as alturas. Ponderem o cenário, tão trivial. É fácil imaginá-lo. Algumas aves são resilientes, adaptáveis, e conquistam naturalmente os centros (ruidosos, alterados e poluídos) das grandes cidades.
Em Coimbra, os pombos, essas alimárias penugentas de praças de fim de tarde e mãos velhas de milho, reinam sobre o arco celeste da Baixa. Conheço algumas pessoas que não se sentam nas esplanadas porque têm medo dessas aves tão prolixas. Há quem lhes chame «ratos de asas», tal a repulsa que excitam. As colónias de pombos que ocupam a zona urbana da cidade usurpam as mesas dos restaurantes e cafés, arruínam o património edificado e acertam nos incautos passeantes com a imundície fisiológica.
As tropelias de tão caótica hoste são excessivas e indigestas, qualquer um reconhece isso. Os comerciantes e os biólogos, os turistas e os responsáveis pelo Centro Histórico estão de acordo numa coisa simples: os pombos são uma praga citadina, um incontestável flagelo urbano. É por isso que a benevolência com que esses seres aéreos eram encarados se esgotou. Nada permanecerá como dantes. A solução defendida pelo director do Gabinete para o Centro Histórico, Sidónio Simões, corteja a possibilidade de «remodelar» as aves, designadamente o seu comportamento reprodutivo, transformando-as em atracção turística. A estratégia ideada contempla a permissão de alimentar os pombos com uma espécie de alimento contraceptivo que dificulta a procriação.
A partir daqui torna-se difícil não pensar numa certa violência antropocêntrica que sempre é exercida sobre o horizonte biológico. É, pois, irrecusável a noção do homem representado como pastor da «animalitas», exercendo uma vigilância eleita no seu próprio interesse, na sua própria conveniência. A «solução» que visa os pombos de Coimbra pode ser metodologicamente eufemística quando comparada com a proposta de esterilização dos cães de raças consideradas perigosas; todavia, o princípio moral é o mesmo e implica a radicalidade de uma conversão forçada a um ciclo anti-natural.
O equilíbrio é delicado. A necessidade de controlar os danos provocados pelo descontrolo demográfico da população de pombos no centro da cidade redime, de certa forma, a dura ingerência humana sobre o ciclo reprodutivo das aves. Os grandes males requerem drásticos remédios. A cidade transformar-se-á num enorme parque zoológico, num lugar de domesticação, selecção e controlo.
Quando, a 12 de Fevereiro de 2009, se comemorarem os 200 anos do nascimento de Charles Darwin talvez os atropelos causados pelos pombos da Baixa sobrevivam apenas em velhas páginas de jornal. O célebre naturalista inglês, columbófilo entusiasta, preferiria certamente que os bandos de pombos continuassem a turvar o azul do firmamento, junto a Santa Cruz. Eu também. É difícil ser o pastor do mundo.
Ontem, 23/04, no Jornal de Notícias
A secura melancólica do céu das cidades é, não poucas vezes, insultada pelo ruflar anárquico de asas, sombras excessivas dilacerando as alturas. Ponderem o cenário, tão trivial. É fácil imaginá-lo. Algumas aves são resilientes, adaptáveis, e conquistam naturalmente os centros (ruidosos, alterados e poluídos) das grandes cidades.
Em Coimbra, os pombos, essas alimárias penugentas de praças de fim de tarde e mãos velhas de milho, reinam sobre o arco celeste da Baixa. Conheço algumas pessoas que não se sentam nas esplanadas porque têm medo dessas aves tão prolixas. Há quem lhes chame «ratos de asas», tal a repulsa que excitam. As colónias de pombos que ocupam a zona urbana da cidade usurpam as mesas dos restaurantes e cafés, arruínam o património edificado e acertam nos incautos passeantes com a imundície fisiológica.
As tropelias de tão caótica hoste são excessivas e indigestas, qualquer um reconhece isso. Os comerciantes e os biólogos, os turistas e os responsáveis pelo Centro Histórico estão de acordo numa coisa simples: os pombos são uma praga citadina, um incontestável flagelo urbano. É por isso que a benevolência com que esses seres aéreos eram encarados se esgotou. Nada permanecerá como dantes. A solução defendida pelo director do Gabinete para o Centro Histórico, Sidónio Simões, corteja a possibilidade de «remodelar» as aves, designadamente o seu comportamento reprodutivo, transformando-as em atracção turística. A estratégia ideada contempla a permissão de alimentar os pombos com uma espécie de alimento contraceptivo que dificulta a procriação.
A partir daqui torna-se difícil não pensar numa certa violência antropocêntrica que sempre é exercida sobre o horizonte biológico. É, pois, irrecusável a noção do homem representado como pastor da «animalitas», exercendo uma vigilância eleita no seu próprio interesse, na sua própria conveniência. A «solução» que visa os pombos de Coimbra pode ser metodologicamente eufemística quando comparada com a proposta de esterilização dos cães de raças consideradas perigosas; todavia, o princípio moral é o mesmo e implica a radicalidade de uma conversão forçada a um ciclo anti-natural.
O equilíbrio é delicado. A necessidade de controlar os danos provocados pelo descontrolo demográfico da população de pombos no centro da cidade redime, de certa forma, a dura ingerência humana sobre o ciclo reprodutivo das aves. Os grandes males requerem drásticos remédios. A cidade transformar-se-á num enorme parque zoológico, num lugar de domesticação, selecção e controlo.
Quando, a 12 de Fevereiro de 2009, se comemorarem os 200 anos do nascimento de Charles Darwin talvez os atropelos causados pelos pombos da Baixa sobrevivam apenas em velhas páginas de jornal. O célebre naturalista inglês, columbófilo entusiasta, preferiria certamente que os bandos de pombos continuassem a turvar o azul do firmamento, junto a Santa Cruz. Eu também. É difícil ser o pastor do mundo.
Ontem, 23/04, no Jornal de Notícias
Etiquetas: jornais
<< Home