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27.8.04

Classificações artificiais

No retorno de férias inteirei-me da discussão arrebatada que grassa pelo vácuo electrónico e que gira em volta da questão judaico-palestiniana, com muita troca de acusações e efervescências várias remetidas por corações sinceros mas, por vezes, cegos de amor às ideologias. Não pretendo amontoar mais uns paus secos no lar flamejante da discussão, mas acho que é importante reflectir um pouco sobre o que tento explanar de seguida.
Falo do conceito de raça, plano essencial dos racismos. As classificações dos organismos realizadas por biólogos ou antropólogos – ou seja o que for – são, e isto é importante, arranjos artificiais que intentam impor uma certa ordem à aparente desordenação da natureza. A classificação enquanto conceito teórico remonta a Aristóteles, cuja base lógica classificatória permanece como o manancial da tradição ocidental de classificação. Bernal considerava, não desacertadamente, que a classificação foi talvez a maior, e mais perigosa, contribuição de Aristóteles para a episteme do Ocidente.
A noção de raça humana carece de fundamento biológico. As taxonomias raciais delimitam entidades que não são homogéneas e que não podem ser “cortadas” aleatoriamente e subtraídas aos outros grupos humanos. As diferenças génicas intra-grupos (entre cidadãos nascidos em Portugal, por exemplo) são maiores que as diferenças inter-grupos (entre cidadãos nascidos em Portugal e cidadãos nascidos na Nigéria). Isto quer dizer que a diferenciação genética, base de algum “racismo científico”, é maior em populações locais que entre as denominadas “raças” ou entre as nações. Geneticamente, posso aparentar-me mais com o José Eduardo dos Santos ou o Moqtada al-Sadr que com o Francisco José Viegas ou o Luís Rainha – apesar do meu fenótipo se assemelhar mais ao destes últimos. É, portanto, abusivo invocar a biologia para sustentar preconceitos raciais.
O “racismo científico” escora-se, pois, num idealismo que todavia persiste: a pretensão da biologia em traduzir a realidade natural pelos quadros rígidos e totalmente arbitrários dos sistemas de classificação.