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3.1.06

No começo

Como não me apetece escrever sobre as virtualidades fenomenológicas da minha passagem de ano - ou mesmo escrever sobre outra coisa qualquer - recupero, para os menos impressionáveis e pedindo desde já perdão a todos os santinhos, o texto daedaliano que mais gostei de escrever [porque tão politicamente incorrecto] no finado ano de 2005.

"O Salhão"

A gaja queria mesmo casar. De véu, grinalda e hímen intacto. E o pai, bêbedo e tudo, a levá-la ao altar. Só faltava um homem que lhe pegasse. Mas pegar aquele salhão adiposo – que na balança da estação volteava o ponteiro ao encarnado – era empreitada que nenhum Hércules patego considerava e muito menos desejava. E se algum cogitasse a coisa era ver-lhe o riso empolado acometendo as lonjuras. De modo que a tipa deu em prometer mundos ilimitados ao orago da paróquia, sem que isso lhe trouxesse benefício de maior. Alguma compassiva Verónica lá lhe demonstrou, por A mais B, que o melhor era ela deixar as macacadas com o santo e virar-se para as dietas e o exercício. Grande ideia, pensou o obstinado salhão, faço o exercício [a dieta fica para outra vez], sim senhora, mas metido numa promessa ao santinho. Todos os dias hei-de dar cem voltas ao cruzeiro da igreja com uma cruz de madeira às costas, até que o santo me arranje um homem, continuou. E assim fez, que aquilo não era mulher de arquitectar promessas vãs.

O compassado andar da gorda delineava momentos álacres na vivência da igreja. Os miúdos embargavam a catequese nas tardes de sábado para verem aquele mastodonte honrar a costumada via-sacra: a cruz enorme, de pinho velho, enfunada ao alto pela gordura informe dos braços, conduzindo o solene trote da promessa, o amplo vestido de cetim florido ajoujado ao corpo montanhoso, as hossanas embargadas pela voz ondulante, a terra em volta do cruzeiro batida pelos passos obstinados da mulher. Nem a geada relampejando nos campos lhe detinha o fervor. Aos sábados, já disse, os garotos da catequese formavam filas atrás dela e cantavam, Ó santo lindo como o sol, arranja gajo que coma este rissol. E compareceram homens e mulheres, e rapazes e raparigas, de todas as condições, formando com aquela gorda inusitada procissão. Até o padre e o sacristão apareciam, pela nonagésima volta, arrastando o Pater Noster pelo adro da igreja. Um dia, alguém se lembrou de alcandorar o santo no andor e juntá-lo ao cortejo. Fez-se. Lá ia ele, no meio da turba, carregado por dois rapazes e duas raparigas, normalmente dois parezinhos que dali corriam para a invisível treva.

A gorda é que não arranjava homem. E um dia que não apareceu na igreja aquela malta não gostou da renúncia. Alguém disse que a tipa ficara na cama, a chorar e a bramir heresias, O santo isto, o santo aquilo. Um fulano foi buscar gasolina e com ela untaram a cruz de madeira e a casa da gaja. Pegaram fogo à casa [com a bácora lá dentro]. Ardeu bem, a gorda. O corpo estava tão calcinado, tão leve, que foi carregado para o cemitério por dois miúdos que cantavam, Ó santo lindo como o sol, deixaste esturricar mais um rissol.